.Gleudecy B.C.Carvalho Rodrigues

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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Ensaio, crítica, resenha & comentário:

Canudos e o Exército

(in Folha de São Paulo, 30 de Novembro de 1999)



O que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes cidades brasileiras, foi o choque do Brasil "oficial e mais claro" contra o Brasil "real e mais escuro". Ao Brasil oficial e mais claro que não é somente "caricato e burlesco", como afirmou um Machado de Assis, momentaneamente perturbado por sua justa indignação, pertenciam algumas das melhores figuras do patriciado do tempo de Euclydes da Cunha: civis e políticos como Prudente de Moraes, ou militares como o general Machado Bittencourt.
Bem-intencionados mas cegos, honestos mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário invadir, assolar e destruir. O civil que começou a reparar esse erro doloroso foi Euclydes da Cunha. O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de Canudos, do lado do Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama que, juntamente com a de Euclydes da Cunha, temos todos nós -intelectuais, políticos, padres, soldados- o dever de levar fraternalmente adiante. Conta-se, em "Os Sertões", sobre o incêndio dos últimos dias de Canudos: "O comandante do 25º batalhão, major Henrique Severiano, era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do peito criando, com um belo gesto carinhoso, o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz e salvou-a. Mas expusera-se. Baqueou mal ferido, falecendo poucas horas depois".
A meu ver, tal seria o militar simbólico, emblema do verdadeiro soldado brasileiro, capaz de apoiar um movimento em favor do povo, também simbolicamente representado aí por essa criança, iluminada entre as chamas do seu martírio.
Euclydes da Cunha, formado, como todos nós, pelo Brasil oficial, falsificado e superposto, saiu de São Paulo como seu fiel adepto positivista, urbano e "modernizante". E, de repente, ao chegar ao sertão, viu-se encandeado e ofuscado pelo Brasil real de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Sua intuição de escritor de gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente ao lado dele, para honra e glória sua. Mas a revelação era recente demais, dura demais, espantosa demais. De modo que, entre outros erros e contradições, só lhe ocorreu, além da corajosa denúncia contra o crime, pregar uma "modernização" que consistiria, finalmente, em conformar o Brasil real pelos moldes da rua do Ouvidor e do Brasil oficial. Isto é, uma modernização falsificadora e falsa, e que, como a que estão tentando fazer agora, é talvez pior do que uma invasão declarada. Esta apenas destrói e assola, enquanto a falsa modernização, no campo como na cidade, descaracteriza, assola, destrói e avilta o povo do Brasil real.

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Uma quase-despedida

(in Folha de São Paulo, 04 de julho de 2000)



Na década de 80, já velho, o Cego Oliveira, músico e poeta popular do sertão cearense, em depoimento prestado ao cineasta Rosemberg Cariry, declarou: "Uma vez, na hora de acabar o toque, cantei uma despedida tão bonita que uma mulher disse: "Faz pena um homem desse ter que morrer um dia!'".
De minha parte, não sei tocar rabeca, não mereço comentário tão belo e comovente nem esta quase-despedida que estou escrevendo aqui é um momento dramático do jornal ou da minha vida. Na verdade, estamos apenas transferindo o local e a data da minha coluna: vou passar a escrever na Ilustrada, toda segunda-feira, em novo formato e numa linha, digamos assim, mais literária.
De qualquer modo, é mais de um ano escrevendo aqui; e, na minha idade, um ano é muito tempo. Por isso, não quis sair sem uma palavra de despedida a meus leitores; principalmente porque, velho como o Cego Oliveira, cada vez mais a literatura se transforma para mim na rabeca que dá tom ao toque da minha vida.
Por outro lado, como escritor que sou, gosto de personalizar meus sentimentos de afetividade; e, para encarnar todos os meus possíveis leitores, escolho hoje, aqui, uma moça de Campinas chamada Cida Sepúlveda. Cida, que, em fevereiro deste ano, me escreveu uma carta na qual dizia, com belas palavras que me tocaram: "Sou uma poetisa anônima, casual, trágica, inconsequente, fruto e produto do casamento entre a urbanidade e a melancolia dos pastos antigos". Cida, que, mais recentemente, me mandou outra carta em que, comentando meu artigo sobre a criação de cabras no Rio Grande do Norte, afirmava: "Fui criada com leite de cabra. Meus pais eram pobres, mas tínhamos uma cabrinha no quintal; eu mesma, menina, algumas vezes tirei leite dela. E como são dóceis esses animais!".
Quero, então, dizer a Cida Sepúlveda que, em ambos os casos, vi que entre mim e ela existe uma grande identificação. Sou relativamente conhecido como romancista e mais como dramaturgo; como poeta sou "anônimo, casual, trágico, inconsequente" e também "fruto e produto do casamento entre a urbanidade e a melancolia de pastos antigos"; pastos esses que, no meu caso, eram povoados de belas cabras agrestes, esquivas, quase selvagens e que pareciam pequenos antílopes, extraviados das savanas da África, das serras do Líbano ou das mesetas da Península Ibérica nos tabuleiros e carrascais do sertão nordestino.
Na última carta que me escreveu, Cida Sepúlveda sugere que eu me valha de "um endereço eletrônico" por meio do qual meus leitores possam me escrever com mais facilidade. Por acaso, recentemente houve, no Recife, um congresso de jornalistas. No dia em que a ele compareci, Matinas Suzuki, ouvindo-me falar de minhas desventuras no mundo dos computadores, generosamente se prontificou a me dar um daqueles endereços. E vou pedir a Alexandre Nóbrega -que é a pessoa que resolve tais assuntos para mim- que entre em contato com Suzuki, a fim de que eu, absolutamente incapaz de fazer isso sozinho, atenda à solicitação de Cida Sepúlveda. Até segunda, na Ilustrada.

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